1-Num debate entre o Padre Carreira das Neves e José Saramago, transmitido pela SIC Notícias, o galardoado com o prémio Nobel sugeriu que a Declaração Universal dos Direitos Humanos devia incluir mais dois direitos: o direito à dissidência e o Direito à heresia. Ora , Saramago esqueceu-se que esses direitos já estão implícitos nos artigos 18º e 19º da referida declaração, que dizem o seguinte : Todas as pessoas têm o direito de liberdade de consciência e de religião ( artº18 ) e de liberdade de opinião e de expressão o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões.
De qualquer forma o Padre Carreira das Neves , com a autoridade que se lhe reconhece, salientou que o direito à heresia só se coloca para quem é cristão, pois para um ateu como Saramago essa palavra ou classificação não tem qualquer sentido. O não crente pode muito dizer o que quiser da doutrina da Igreja que ninguém o acusará de herege. Mas afinal o que vem a ser uma heresia ?
2-Heresia ( do grego hairesis-escolha,opção ) é tudo o que entra em colisão com a doutrina oficial da Igreja ou nega os seus dogmas. Quando Jesus começou a sua pregação e se intitulou como filho de Deus, os judeus classificaram-no de blasfemo, porque atentava contra o poder religioso e contra a ortodoxia judaica do seu tempo. Depois da morte de Jesus começam a formar-se as primeiras comunidades cristãs. Devido à acção de S. Paulo essas comunidades vão-se espalhando um pouco por todo o lado : Antioquia e Éfeso na Ásia Menor, Filipos ( Macedónia ), Tessalónica e Corinto ( Grécia ). A partir daqui e ao longo de vários séculos desencadeou-se uma série de acções que levaram à formação da doutrina oficial da Igreja. Os factos mais importantes a referir são os seguintes: profissão de fé para os catecúmenos em preparação para o baptismo, celebração da eucaristia em casas particulares, proclamação do Evangelho e a acção pastoral dos primeiros bispos. A Igreja com base na tradição apostólica começa a estabelecer o cânon dos evangelhos e a separá-los dos textos apócrifos ( falsos , não autênticos ). Logo no início da actividade apostólica de S. Paulo começaram a surgir divergências com os judaico-cristãos que entendiam que os gentios se deviam submeter à lei de Moisés e portanto à circuncisão e às leis do puro e do impuro. Para pôr termo a este conflito reuniu um concílio em Jerusalém no qual se deliberou que os pagãos não ficavam sujeitos à Lei..
Com o decurso do tempo foram aparecendo questões teológicas novas para as quais era necessário encontrar uma resposta. Aos Padres Apostólicos ,ou seja, os que mais perto estavam da Era dos Apóstolos, coube um papel importante na doutrinação e no esclarecimento das dúvidas. Desses Padres destaco como mais importantes os seguintes: Clemente de Roma, Policarpo de Esmirna, Papias bispo de Hierapolis e Inácio bispo de Antioquia. Todos eles escreveram cartas onde deram testemunho da sua fé e acabaram por morrer como mártires.
3-À medida que se ia sedimentando a doutrina da Igreja foram surgindo também grupos dissidentes ou seitas heréticas. Como não é possível falar de todas ,vou apenas referir algumas ,que passo a citar: gnosticismo, docetismo, marcionismo, montanismo, monarquismo, donatismo, nestorianismo, aranismo e monofisismo.
O gnosticismo é um sincretismo religioso que envolve elementos da cultura grega, da cultura judaica e do cristianismo. Assenta no dualismo matéria – espírito. Este grupo pensava ter um conhecimento ( do grego gnósis- conhecimeto ) oculto de Deus . Segundo a teologia gnóstica existiam dois mundos: o da luz, espiritual, governado por um Ser único, transcendente e o mundo material das trevas e da ignorância onde vivia o homem. O corpo e a matéria são maus. O Deus do Antigo Testamento ( demiurgo ) que criou o universo é mau. Podemos chegar ao Ser único através de práticas esotéricas e pelo misticismo, passando do reino da matéria para o reino do espírito.
A doutrina gnóstica deve ter entrado na Igreja no tempo dos Apóstolos pois São Paulo refere-se a ela na carta aos Colossenses e na carta aos Coríntios. Os gnósticos rejeitavam a Encarnação pois entendiam que a matéria é malévola. Entendiam também que Jesus Cristo só na aparência foi homem pois na realidade era apenas espírito. Esta heresia foi designada por docetismo ( do grego dokétis- aparência )
Marcionismo- Corrente gnóstica do século II que teve como fundador mais notável Marcião. Para Marcião havia dois deuses : o do Antigo Testamento e o Deus de Jesus. O primeiro, o Deus criador, era mau e vingativo ; o segundo o Deus de Jesus era o deus da graça e do amor. Só através de Jesus o homem se libertaria do mundo e da carne para chegar ao verdadeiro Deus. Marcião eliminou do texto bíblico o Antigo testamento ficando apenas alguma passagens do Novo testamento.
Montanismo- 170 dc Montano líder deste movimento entendia ser possuidor de uma nova revelação a juntar à revelação bíblica. Acreditava que o Reino do Céu em breve desceria à Terra, na Frígia, Ásia Menor. Os Montanistas levavam um vida austera e tinham a pretensão de serem os únicos e verdadeiros cristãos
Monarquismo- esta heresia começou em Roma por volta do ano 190. O medo de falar de Jesus com sendo Deus poderia pôr em perigo a autoridade de Deus ( monarquia ) O monarquismo assumiu duas formas : uma escola dizia que Jesus era inferior a Deus . Só depois do baptismo Jesus foi adoptado como filho de Deus. ( teoria adopcionista ) ; outra escola entendia que Jesus não era uma pessoa distinta mas uma modalidade ou forma diferente de Deus. ( teoria modalista )
Donatismo- Heresia do século IV que dividiu a Igreja do Norte de África. Perante esta corrente ninguém que directa ou indirectamente estivesse ligado aos que perseguiram os cristãos podiam celebrar validamente os sacramentos.
Arianismo- Movimento do século IV fundado por Ário. Este movimento negava a divindade de Jesus que era apenas um ser humano criado por Deus.
Nestorianismo- Doutrina do século V com o nome do sacerdote Nestor. Para esta doutrina Cristo tinha duas pessoas separadas : a humana e a divina e não havia qualquer união entre elas. Nestor recusava-se a admitir uma natureza divina aos actos humanos e ao sofrimento de Jesus. Maria era apenas mãe de Jesus e não mãe de Deus.
Monofisismo- Doutrina herética do século V que defendia que Cristo tinha apenas natureza divina e não duas naturezas ( humana e divina ) . As Igrejas Coptas ( Egipto ), Etiópia, Arménia e Síria que seguiram esta doutrina separaram-se do resto da Igreja.
Na defesa da Igreja apareceram primeiro os Apologetas do Cristianismo primitivo à frente dos quais surgiu o famoso Mártir e filósofo Justino. Mas o papel mais importante estava reservado para os “ Padres da Igreja “ , ou seja os grandes teólogos que se distinguiram não só pela sua santidade mas também pela doutrina que deixaram e que ainda hoje é uma referência na teologia. Os Padres da Igreja sublinharam que o verdadeiro cristianismo devia ser encontrado na tradição apostólica e que seriam os bispos como sucessores legítimos dos apóstolos a definir a ortodoxia. Dos Padres da Igreja que exerceram o seu magistério no século III há a destacar os seguintes: Ireneu de Lião, Tertuliano, Hipólito e Cipriano.
Ireneu escreveu uma “ Carta contra as heresias “ ( Adversus haereses ); Tertuliano na sua obra “ Praescriptione haeretorum “ refuta as heresias gnósticas através de duas conclusões: 1- Cristo transmitiu a sua doutrina apenas aos seus apóstolos e a mais ninguém ; 2- os Apóstolos limitaram-se a transmitir a sua doutrina exclusivamente aos bispos da Igreja por eles fundada
Hipólito escreveu o livro “ Refutatio omnium haeresium “ ( Refutação de todas as heresias);
Cipriano foi um defensor da unidade da Igreja ( De eclesiae unitate ) . No fim da vida envolveu-se em polémica com o papa Estêvão I defendendo que a validade do baptismo dependeria do estado de graça do sacerdote.
3-Como se vê as heresias têm a sua origem em movimentos de crentes que se opõem à doutrina oficial da Igreja. Por isso, José Saramago pode ficar tranquilo que não é pelos seus dislates a respeito da Igreja ou da Bíblia que vai ser apodado de hereje. Embora saiba escolher as polémicas e os temas que melhor ajudam a vender os seus livros não lhe fica nada bem ofender deliberadamente e de forma grosseira os sentimentos dos crentes. Ficaria melhor na fotografia se o víssemos escrever sobre os massacres e extermínios estalinistas na Sibéria ou sobre o “ Capital “ de Marx ,livro que é considerado a bíblia do comunismo.
Livros consultados:
História do Cristianismo,Michael Collins e Matthew A Price- Livraria Civilização Edit.
História da Igreja –Paulus Editora
Breve História da Igreja,August Franzen-Editorial Presença
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